Por: Adulai Indjai
Sendo nascido depois da morte de Cabral, tive a oportunidade de conhecer essa figura de dimensão mundial nos livros da escola primária. Na minha fase de adolescência assisti o desaparecimento de Cabral orquestrado pelos que queriam substituir o Cabralismo pelo Ninismo.
Nos meandros dos anos 1990 a Pátria Amada de Amílcar Cabral entrou no mundo evoluído da democracia. O Cabralismo foi buscado nas gavetas do PAIGC para ser colocado na ordem dia.
A Guiné-Bissau, traiu a memória de Cabral não restam dúvidas, mas, o imperativo não é analisar a traição à memória de Cabral, mas sim analisar o Cabralismo no processo democrático.
Amílcar Cabral construiu um modelo de partido mais democrático do mundo – o PAIGC não foi criado como um órgão político, mas como um laboratório democrático. Foi assim que, no ano de 1972 foi realizada nas zonas libertadas as primeiras eleições livres e democráticas. Foi o primeiro grande teste democrático. Foi um sucesso, porque foi eleita a primeira assembleia representativa do povo.
A conceção do modelo político de Amílcar Cabral, é um dos maiores conceitos democráticos africanos. Para Cabral, a libertação do povo guineense não podia ser somente militar, mas sim a liberação de todas as formas de dominação, seja económica, cultural, e, sobretudo, social. No imaginário do fundador do PAIGC, um povo instruído é um povo libertado totalmente das garras do colonialismo. Toda a ideologia de Amílcar Cabral centra-se no bem-estar do povo africano na generalidade.
O PAIGC, assim como toda a classe política guineense, lembram-se do conceito de democracia de Cabral? Talvez sim.
O PAICV não é o exemplo para qualificar como “conservador” do conceito político de Amílcar Cabral, mas o povo cabo-verdiano talvez sim. Os ciúmes dos nativos guineenses contra os descendentes de Cabo Verde na Guiné-Bissau foi um erro orquestrado pela obsessão do malogrado General Nino Vieira. A pouca consideração de Nino Vieira a esse conceito acabou por transformar Cabral numa figura comemorativa sem o respeito que lhe é devido. Mas, a herança de Cabral é a nossa melhor fonte de enriquecimento democrático, porque o conceito de Amílcar Cabral, um vulto político de renome mundial, é baseado na realidade do nosso país tomando em conta todas as diversidades étnicas, culturais, económicas, que caracterizam a Guiné-Bissau.
Mas, será que Nino Vieira é o único culpado do desaparecimento do Cabralismo?
Não estou aqui a fazer uma crónica histórica, mas, apenas uma análise da conceção da democracia de Cabral. A Guiné-Bissau foi buscar um conceito democrático moderno, mas, completamente desconectado com a nossa realidade. Porquê? Simplesmente porque a democracia é um instrumento que deve ser construído alicerçado na realidade do país, das nossas tabancas e regiões, tendo em consideração, obviamente, o modelo de desenvolvimento económico conforme Cabral o tinha concebido.
Amílcar Cabral apostou na arma mais potente por ganhar qualquer tipo de guerra, a EDUCAÇÃO.
A criação da Escola Piloto nas zonas libertadas, as bolsas de estudos contempladas aos recém-formados, demonstra a visão de futuro de Abel Djassi. Para ele, a democracia não tem futuro num país em que a grande maioria da população é analfabeta. Mas, deve-se ter conta que o mal não é só o analfabetismo escolar, mas, sobretudo, o analfabetismo intelectual que é um dos maiores males da democracia.
A Democracia do Cabralismo nasceu nas regiões profundas do nosso país. Como é que o Homem com mais 5 companheiros conseguiram criar um movimento para libertar um povo cuja maioria não sabia ler nem escrever? Como é que esse Homem conseguiu convencer o povo guineense, constituído de mais de 40 etnias, a juntar-se para libertar o país inteiro? Como é que, depois de Cabral, nenhum outro político conseguiu unir o povo guineense à volta de um objetivo comum? Como é que se conseguiu transformar as ideias de Cabral numa arma contra o desenvolvimento? Como é que se pode justificar o subdesenvolvimento de um país construído com muita ambição? Não será porque esquecemos que ninguém consegue erguer um povo sozinho?
Talvez porque esquecemos que o maior combate que restava a fazer era combater os colonialistas internos. Mas, estes deviam ser combatidos com ideias inovadoras com destaque à descentralização democrática iniciada por Cabral, com as eleições autárquicas para que cada região seja autónoma e possa desenvolver-se construindo um modelo económico baseado nas suas próprias capacidades e nos recursos disponíveis, como, por exemplo, no Leste podia-se desenvolver a criação de gados; no Norte desenvolver a lavoura do arroz; no sul as frutas; nas ilhas as pescas. As eleições autárquicas serviriam para permitir o desenvolvimento localizado das populações. É um modelo económico que poderia fortalecer o desenvolvimento de todo o país.
Suponho que Cabral não terá imaginado que seu conceito de democracia seria rejeitado em detrimento de um modelo democrático falhado sem raízes nas nossas culturas. Nem tão pouco terá imaginado que uma democracia mal concebida seria implementada, somente, depois de mais de 20 anos da governação orientada a partir de um laboratório político por alegados ideólogos do PAIGC. Esse laboratório transformou-se num tribunal para julgar todos os camaradas que quiseram reviver o conceito democrático mas que, por isso, foram assinados sem justiça nem piedade.
No momento da construção do movimento político Amílcar Cabral excluiu toda a forma conotação religiosa ou de regionalização do PAIGC. Projetou uma realidade baseada nas particularidades de cada população que constitui o país, respeitando as respetivas diferenças, porque entendia que a democracia só podia funcionar nessa condição.
Copiar algo de errado e acreditar que é o melhor, constitui um erro de perceção. O Nino Vieira terá tentado substituir a imagem de Cabral com a ajuda dos seus detratores na tentativa daquilo que podemos considerar como a segunda colonização do nosso povo.
Durante a abertura democrática a esperança de ver nascer os partidos políticos herdeiros do conceito democrático de Cabral, morreu antes mesmo de nascer. Assistiu-se a uma situação que pode ser definida como “cada um por si Deus por todos”. Prova disso é o grande número de partidos políticos que existem num país tão pequeno como a Guiné-Bissau.
Vivemos hoje, no nosso país, um momento crucial, onde o Cabralismo, a meu ver é o único remédio.
Espera-se do PAIGC a grandeza da sua criação, nasceu a esperança de que a vontade do povo prevalecerá sobre a vontade dos homens. Não pode haver guerra pelo poder num contexto democrático tão fragilizado como o nosso. São horas de a razão governar em vez do egocentrismo. A hora é de compromisso democrático em nome da paz social, ao menos uma das outras formas de honrar a memória de Cabral. É irónico pensar que o conceito democrático de Cabral será respeitado num país como a Guiné-Bissau onde está enraizada a guerra do ego e do poder. Um grande homem não se mede pelas suas palavras, mas pelas suas ações.