Tuesday, December 05, 2023
REFLEXÃO

GUINÉ-BISSAU: 50 ANOS DEPOIS DA INDEPENDÊNCIA

Outubro 01, 2023
  

Por: Carlos Vamain

Introdução

O surgimento da Guiné-Bissau como um Estado independente da antiga potência colonizadora – Portugal, contrariamente à maioria dos países africanos que ascendeu à independência nos anos 60, resulta de um processo de luta armada de libertação nacional levado a cabo por nacionalistas guineenses e cabo-verdianos em torno do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), liderado por Engº. Amílcar Cabral. E, no auge desta resistência armada que durou praticamente onze anos, foi proclamada unilateralmente a 24 de Setembro de 1973 o Estado independente da Guiné-Bissau pela Assembleia Nacional Popular na sequência de eleições regionais e legislativas nas vastas zonas libertadas por parte das populações locais, reconhecida de imediato por vários países membros das Nações Unidas e, de jure por Portugal, a 10 de Setembro de 1974, em consequência da revolução dos cravos de 25 de Abril de 1974 desencadeada pelos capitães agastados pela guerra colonial, sobretudo na então Guiné Portuguesa.

A Guiné-Bissau, um país com uma superfície de 136.125 quilómetros quadrados, conta actualmente com uma população estimada em cerca de 2. 068 616, com uma renda per capita anual estimada em 561,50 XOF, o que significa uma renda per capita por dia de 1,53 XOF. Em 1953, dez anos antes do início da luta armada de libertação nacional a população era estimada em cerca de 500. 000 habitantes e, à altura da independência rondava um pouco mais de 800.000 habitantes. 

A independência, para Amílcar Cabral, significava a inversão da situação político-económica e social que vigorava no país, na perspectiva de construção de uma nova sociedade política e economicamente mais justa, ao constatar já nos anos cinquenta que: «Somos atrasados economicamente, sem desenvolvimento quase nenhum, tanto na Guiné como em Cabo Verde.» Prosseguindo: « Não há indústria a sério, a agricultura é atrasada, a nossa agricultura é do tempo dos nossos avós. As riquezas da nossa terra foram tiradas, sobretudo, do trabalho do homem. Mas os tugas[1] não fizeram nada para desenvolver qualquer riqueza da nossa terra, absolutamente nada.»[2] Não obstante, consciente das potencialidades da agricultura para o país, Amílcar Cabral, considerava-a a base fundamental da economia da Guiné-Bissau, afirmando que o progresso económico do país depende principalmente do progresso da agricultura. E, acreditando nesta tese, afirmava, nomeadamente, que tal progresso era realizável, dada a grande adaptabilidade de várias culturas industrializáveis e de elevado rendimento, ao meio agroclimático. Uma situação que exigia, segundo ele, como base essencial, a criação de condições que permitam, quer no campo humano, quer no físico, a valorização dos recursos do meio e a sua integral utilização a bem do progresso da Guiné-Bissau[3]. Neste contexto, A. Cabral, em relação à agricultura e com vista à sua valorização, já formulava, em 1953, nomeadamente, as seguintes necessidades que deveriam ser tomadas em consideração na formulação da política de desenvolvimento ulterior do Estado da Guiné-Bissau: 

a) Estabelecimento, com base nas tradições locais, duma estrutura agrária compatível com o desenvolvimento progressivo das populações; 

b) Aumento do número de técnicos agrícolas competentes e fomento do acesso dos guineenses ao ensino técnico agrícola, em particular, e à instrução em geral; 

c) Organização dos serviços Agrícolas, de molde a poderem exercer uma actividade eficiente, na investigação, na experimentação e na assistência técnica ao agricultor; 

d) Desenvolvimento em bases científicas da exploração de culturas de grande rendimento e tirar a maior produção por unidade de superfície, já pela melhoria das técnicas endógenas, já pela introdução de novas técnicas adaptáveis ou adaptadas às condições do meio;

e) Valorização dos produtos da agricultura, atribuindo-lhe, no mercado, preços compensadores, mas principalmente pela instalação local de indústrias transformadoras.

Ora, volvidos 48 anos da independência efectiva, isto é, a partir do momento em que os libertadores assumem o controlo efectivo do país, em Outubro de 1975, o sonho de Cabral permanece ainda de actualidade e por realizar, na medida em que o atraso da Guiné-Bissau tem-se acentuado de forma gritante, no domínio económico em razão de ausências de políticas públicas adequadas e assentes na agricultura. Isto porque, « os tugas foram-se embora e foram substituídos por tugas de terra». Claro que, apesar dos desvarios que vieram tomar conta do país, nos primórdios da independência havia vontade inabalável, acrescida de honestidade e humildade dos dirigentes de então, de pôr em prática os ensinamentos e a visão de Amílcar Cabral que, entretanto, se volatilizaram na sequência do chamado golpe de estado de 14 de Novembro de 1980, batizado pelo Movimento Reajustador de 14 de Novembro.

I. A GESTÃO DA INDEPENDÊNCIA

50 anos depois da proclamação unilateral da sua independência, a Guiné-Bissau, com uma área total cultivável de cerca de 410.801 hectares, encontra-se excessivamente dependente do exterior, contribuindo a cada dia que passa a hipotecar a sua independência duramente conquistada e com enormes e inestimáveis sacrifícios dos seus filhos e num país que tem tudo para dar certo. Pois bastava apostar-se na agricultura como fundamento do seu desenvolvimento, tal como sonhara Amílcar Cabral para que se obtivessem resultados satisfatórios que pudessem sustentar o seu desenvolvimento. Isto porque, já em 1953, no território hoje chamado Guiné-Bissau, chegou-se a produzir, numa área de 153.030 hectares, 100.277 toneladas de arroz, enquanto, que, numa área de 52.906 hectares, produziram-se 17.834 toneladas de sorgo, para além de 24. 968 toneladas de mandioca, numa área de 14.814 hectares e de 63.975 toneladas de mancarra, numa área de 105.016 hectares[4].

Nos primórdios da independência, isto é, nos primeiros cinco anos da independência total, com um certo voluntarismo de Luís Cabral[5] levou-se a cabo uma política de industrialização do país[6], como forma de contribuir para o seu desenvolvimento assente na agricultura. Assim, surgem os canteiros de obra como o Complexo agro-industrial de Cumeré[7], Usina de oxigénio e acetileno, fábrica de sumos e compotas em Bolama, fábrica de cerâmica para a produção de tijolos e telhas, usina de montagem de veículos «N’hayé» em parceria com a fabricante de automóveis francesa Citroên e uma pequena unidade de processamento e conservação do pescado para a exportação – a SEMAPESCA, igualmente com o apoio da França, assim como a electrificação do país. E tudo isso acontece em cinco anos, de Outubro de 1975 a Novembro de 1980. Hoje, a Guiné-Bissau encontra-se fragilizada, enfrentando, por culpa dos seus dirigentes políticos, inúmeras dificuldades em decorrência:

  1.  Da insuficiência da gestão económica e do domínio do processo de liberalização;
  2.  Da produtividade insignificante do aparelho administrativo;
  3.  Da degradação cada vez mais acentuada dos sistemas educativo e da saúde;
  4.  Do peso das taxas públicas; 
  5.  Da ausência de dinamismo do sector privado.

Num país essencialmente agrícola, em que cerca de 60% da população vive no meio rural, a aposta, como sugeria Amílcar Cabral,  no desenvolvimento da nossa agricultura em bases científicas, partindo da exploração de culturas de grande rendimento, poderia o país, com empenho e visão prospectiva dos seus dirigentes, ter conseguido tirar a maior produção por unidade de superfície, pela melhoria das técnicas de produção tradicionais a partir da introdução de novas técnicas adaptáveis ou adaptadas às condições do meio para o seu desenvolvimento.

Ora, o que ocorreu, foi totalmente o inverso da esperança depositada no sonho da independência tão acalentada pelo povo da Guiné-Bissau, hoje muito frustrado com as sucessivas e crónicas instabilidades político-militares que afugentam tanto os recursos humanos como os potenciais investidores de que tanto o país necessita para a sua descolagem económica rumo ao seu desenvolvimento. 

Por outro lado, a teimosia em fazer depender o país dum único produto – a monocultura da castanha de caju – que representa actualmente 90% das receitas de exportação e um pouco mais de 6% do PIB e uma receita fiscal que oscila em torno de 4 a 5 000 000 000,00 de XOF, que mal chega para pagar o salário de um mês na Função Pública, não pode deixar de tornar o país muito vulnerável, com  impactos negativos  sobre a sua segurança alimentar, no momento em que se registam crises no sector dos cereais. Isso porque, o comércio que gira em torno da troca de castanha de caju pelo arroz, conduz à uma estagnação da produção alimentar interna e aniquila todo o esforço de produção orizícola local que, paradoxalmente, custa mais caro do que a produção importada de países asiáticos. 

Em suma, as opções de políticas económicas e suas consequências em matéria social ou de distribuição de riquezas revelaram-se e continuam a revelar-se negativas no seu conjunto. Uma situação que não é de natureza a inverter esta tendência nos próximos vinte anos, em razão de ausência de uma política virada para o desenvolvimento auto- sustentado e sustentável da Guiné-Bissau sobretudo no sector agrícola.

Efectivamente, a luta político-armada de libertação nacional organizada pelo PAIGC fica inscrita na história como uma das páginas mais belas da resistência dos povos africanos contra a dominação estrangeira, conforme sublinha o preâmbulo da Constituição da República da Guiné-Bissau[8]. Contudo, não nos parece bastar apenas a inscrição na história contemporânea de uma das mais belas páginas, com enormes e inestimáveis sacrifícios consentidos pelos povos da Guiné e de Cabo Verde[9] para a sua própria libertação do jugo colonial, sem que no entanto tenha havido a mesma persistência e continuidade das acções que nortearam a luta libertadora contra o colonialismo português pela independência, para a reconstrução dum novo Estado povoado por cerca de vinte grupos étnicos diferentes, que devia primar pela dignidade e respeito do ser humano, tendo este como o motor do seu desenvolvimento, através do conhecimento. Contrariamente, sem menosprezo pelo quanto o PAIGC fez como instrumento galvanizador dos povos da Guiné e de Cabo Verde para a reconquista da sua soberania, pode-se afirmar, hoje, decorridos 48 anos da independência efectiva do jugo colonial, sem dúvida, que foi  bem mais  fácil, na Guiné-Bissau, levar a cabo uma luta de libertação contra o ocupante estrangeiro do que erguer um país com todos os seus intrincados e excessivamente complexos problemas, a partir do nada, rumo ao seu desenvolvimento. E disso, Amílcar Cabral estava consciente, donde ter tentado inculcar na mente dos seus combatentes de que a luta contra o colonialista era o programa mínimo, sendo a reconstrução do país e seu respectivo desenvolvimento, o programa maior.

Há que sublinhar que, não obstante alguns progressos alcançados, graças a um rápido crescimento exponencial da economia,  sob a liderança de Luís Cabral, na altura, no campo político, não se registaram avanços em razão das próprias características do sistema político de partido único,  na medida em que, a política prevalecente assentava no expurgo frequente da sociedade nova em construção dos quadros e altos funcionários bem treinados e dotados do conhecimento da administração pública, que duma maneira ou doutra haviam colaborado com a administração colonial ou nela trabalharam. Uma situação que fez com que o país registasse uma fuga em massa de «cérebros». Neste contexto, apesar do voluntarismo nas políticas públicas de desenvolvimento que parecia dar os seus frutos, a conjuntura política internacional aliada às debilidades económica e financeira internas fez com que o regime experimentasse algumas dificuldades financeiras que estiveram, sem dúvida, na origem da penúria alimentar duma população urbana habituada ao consumo de bens de primeira necessidade importados. E, numa combinação dos elementos da crise financeira com os elementos políticos que se prendiam com a necessidade de uma certa afirmação de alguns dirigentes guineenses face à ala dirigente cabo-verdiana constituída de uma pequena elite pensante, com experiência administrativa que emergiu da sociedade colonial e que se «suicidara» na luta armada de libertação, constituiu o detonador para o virar da página que apagou o sonho de Amílcar Cabral quanto ao cumprimento de um dos elementos do programa Maior do PAIGC: a Unidade da Guiné e Cabo Verde. Trata-se do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, cinco anos após a assunção efectiva do Estado da Guiné-Bissau pelo PAIGC e que não contribuiu para a melhoria dos indicadores de desenvolvimento. Muito pelo contrário, o país passa a conhecer as mazelas como a corrupção, o nepotismo e a socialização dos prejuízos e correspondente privatização de lucros em benefício dos detentores do aparelho do Estado, em detrimento da esmagadora maioria da população.

II. AS DIFICULDADES ESTRUTURAIS E A INSTABILIDADE CRÓNICA

O país está neste momento, a viver uma profunda crise estrutural que o coloca numa posição de crescente vulnerabilidade. Com uma administração pública pletórica e caótica, acrescida duma economia praticamente inexistente e profundamente extrovertida e sem competitividade, constituem os excelentes ingredientes para frequentes e cíclicas instabilidades político-militares, em razão da composição das actuais Forças Armadas que ainda contam no seu seio um número considerável na sua cúpula de combatentes da liberdade da pátria. De sublinhar que, a adopção pelo país do pluralismo político, imposto pelas potências estrangeiras e de forma precipitada e emocional, não se fez acompanhar com a necessária adequação e redimensionamento das Forças Armadas, que estagnaram no tempo, com as estruturas mentais do Partido-Estado e com as funções de braço armado do Partido no poder. A isso, acresce a inadequação do pluralismo político à realidade socio-cultural do país. Pois, em vez de contribuir para o desenvolvimento, tem servido como instrumento de manipulação étnica e de compra de consciência, para além da demonstração da força financeira cuja origem permanece oculta.

A administração pública, que empregava há uns anos cerca de 30 mil funcionários públicos, o que representava pouco mais de 2% da população, mas que absorve pouco mais de 80% das receitas orçamentais do Estado, urge reestruturá-la, senão proceder à sua reforma estrutural profunda, que deve assentar-se na promoção e valorização do conhecimento para o seu desenvolvimento. Hoje, infelizmente, os números dos funcionários se não duplicara, muito provavelmente deve ter-se triplicado.

Por outro lado, face à essa situação de debilidade em que se encontra o Estado da Guiné-Bissau, acrescida de ausência de políticas públicas estruturantes, este tende a tornar-se refém de quem devia promover a sua integridade territorial. Trata-se das Forças Armadas (Revolucionárias do Povo), que, tendo sido, outrora, o braço armado do Partido-Estado pós-independência, foram marginalizadas durante longos anos pelo poder político, que não conseguiu formular, nem executar políticas públicas no sector de defesa nacional visando o cumprimento do seu papel primordial. Isto porque, em tempo de paz, deve-se associar activamente as Forças Armadas nas tarefas de reconstrução nacional do País, em conformidade com os ditames constitucionais (Artigo 20º, n.º 3 da Constituição da República). Ademais, não foi por acaso que o legislador de 1999, ao votar um pacote de leis sobre a modernização do Exército do País, instituiu a existência dum Conselho Nacional Superior de Defesa presidido pelo Presidente da República e do qual fazem parte, nomeadamente, o Primeiro Ministro, os Ministros da Defesa Nacional, do Interior, dos Negócios Estrangeiros, da Economia e Finanças, das Obras Públicas que, entretanto, nunca funcionara. A participação destes dois departamentos ministeriais, a saber, a Economia e Finanças e as Obras Públicas, nesse Conselho destina-se, precisamente, à materialização da disposição constante do Artigo 20º, com a criação de frentes de trabalho que associem a participação dos militares nas tarefas de reconstrução e de desenvolvimento do país e do seu próprio sustento. A ausência de uma política pública consistente visando adequar as Forças Armadas à configuração da sociedade guineense de que são defensoras, tem contribuído para a transformação do combate político, no quadro de Estado de direito democrático em simples combate político-militar. Pois, em vez de os militares estarem ao serviço do Estado, entregam-se, igualmente, à luta pelo poder, passando os problemas políticos a serem resolvidos pelas armas. 

As causas da actual instabilidade cíclica e crónica na Guiné-Bissau estão directamente relacionadas com a sua debilidade económica, que acabou por fragilizar as suas instituições políticas, tornando-as vulneráveis e permeáveis à corrupção e a todo o tipo de tráficos e de ilicitudes. Em consequência, o Estado passa a ser encarado como um instrumento para a promoção do bem-estar pessoal, deixando de lado a sua vocação natural de promoção de bem-estar geral. Ora, num Estado de direito democrático onde os recursos financeiros são escassos, como já dizia, Maurice Duverger[10], a luta política para o poder tende a ser mais renhida, se não violenta, por tratar-se de um combate político pela sobrevivência, em que todos os meios são considerados bons para atingir os objectivos propostos. 

À esta situação de debilidade institucional vem juntar-se, agora, o narcotráfico, que acabou por transformar a Guiné-Bissau como a placa giratória da droga na sub-região, a ponto de o Secretário adjunto dos Estados Unidos da América para a África, Johnie Carson, qualificar o país, perante o Senado americano, de primeiro narco-Estado no mundo. Uma situação de extrema gravidade e que deve merecer um reparo, na medida em que, a qualificação dada significa necessariamente que as instituições do Estado da Guiné-Bissau estão implicadas no tráfico de droga. Isso porque somente nesta condição pode-se qualificar um Estado de narco-Estado.

Se ontem, as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), foram um instrumento de libertação nacional ao serviço do povo, hoje devem ser um instrumento primordial de defesa da Nação em construção, incumbindo-lhes a tarefa, nomeadamente, de defender a independência, a soberania e a integridade territorial e colaborar estreitamente com os serviços nacionais e específicos na garantia e manutenção da segurança interna e da ordem pública.
Assim, no contexto de crise económica e de clima de tensão latente que se tem verificado na Guiné-Bissau 48 anos após a sua independência e do controlo efectivo do aparelho do Estado, que devia ter o significado de desenvolvimento, julgamos ser pertinente, em guisa de contribuição, uma reflexão profunda, neste espaço, sobre as seguintes questões quenos interpelam e que podem dar luzes para se encontrar soluções, quiçá, mais adequadas e adaptadas à nossa realidade socio-económica:
  1. Se as Forças Armadas destinam-se à defesa da independência, da soberania e da integridade territorial, qual o nosso conceito de defesa e, em face deste, quem são os potenciais inimigos objectivos contra os quais se propõem defender?
  2. Em função da resposta à questão precedente, que números de efectivos são necessários para prevenir os supostos ataques dos potenciais inimigos da independência, da soberania e da integridade territorial da Guiné-Bissau? E será que a distribuição geográfica dos aquartelamentos existentes que datam do período colonial se adequam ao novo conceito de defesa nacional em face da crescente globalização e de surgimento de novos tipos de inimigos eventuais e potenciais do país? 
Julgamos ser indispensável que à reforma das Forças Armadas anteceda a definição clara do Conceito Estratégico de Defesa Nacional para o país. E essa definição deve obedecer às disposições constitucionais e legais que enformam a política de Defesa Nacional. Por isso afirma-se que a Defesa Nacional tem por objectivo garantir a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações, contra qualquer agressão ou ameaça externas. 
À Defesa Nacional incumbe, ainda, garantir a liberdade de acção dos órgãos de soberania, o regular funcionamento das instituições democráticas, a possibilidade de realização das tarefas fundamentais do Estado, o reforço dos valores e capacidades nacionais, assegurando a manutenção ou restabelecimento da paz, em condições que correspondam aos interesses nacionais.

Na Guiné-Bissau, pelo imperativo constitucional as Forças Armadas devem obediência aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei. O que significa que esta obediência se limita ao estrito cumprimento da legalidade. Isto é, pretende-se que as nossas Forças Armadas funcionem em estrita legalidade e baseadas no princípio que os franceses apelidam de “baioneta razoável”(o que significa que o dever de obediência cessa quando conduz à prática de um crime. Caso contrário, a desobediência tornar-se-á legítima, na medida em que, a responsabilidade criminal é pessoal e intransmissível conforme o disposto no Artigo 37º, n.º 4 da CRGB). Assim, a obediência devida aos órgãos de soberania é em razão da competência constitucional e/ou legal destes. 

Nos termos da lei, em sentido lato (Decreto-Lei sobre a Orgânica do Governo), compete ao Ministério da Defesa Nacional formular, coordenar e executar a política do Governo quanto à defesa da independência e soberania nacionais e à integridade do território e garantir a salvaguarda da ordem democrática constitucionalmente estabelecida, de acordo com as directivas e orientações governamentais. E o Estado Maior General das Forças Armadas é uma instituição que depende do Ministro da Defesa, nos termos da lei. O que significa que o Ministro é o elemento-chave da formulação da política governamental para a defesa nacional em face do Parlamento, cuja competência é exclusiva nesta matéria (Artigo 86º, alínea c), da Constituição da República).

Assim, considerando que a estrutura militar faz parte integrante da Administração Pública do Estado, torna-se evidente que ela seja tomada globalmente no contexto das políticas nacionais de desenvolvimento. É de ressaltar, neste quadro que, torna-se um imperativo a reforma do Estado na Guiné-Bissau que passa pela racionalização e contenção das despesas públicas por forma a encontrar um ponto de equilíbrio nas finanças públicas. Pois, haja dinheiro para fazer face aos nossos custos de funcionamento. A título exemplificativo, temos a seguinte situação ao nível da nossa Administração Pública: de acordo com dados estatísticos de 1997, a Administração Pública contava com um efectivo global de 17.869 servidores e agentes do Estado. E, de entre essa cifra, os efectivos das Forças Armadas representavam 14% (2.567).[11]Entretanto, já em 2000, assiste-se à progressão do efectivo global na Função Pública situando-se em torno de 26.112, sendo que 55% destes constituem o efectivo das Forças de Defesa (militares 42%) e de Segurança (para-militares 13%). 

Isso quer dizer que as despesas de funcionamento do Estado orientado para as Forças Armadas, que representavam cerca de 8%, passaram de forma meteórica para os cerca de 26%, para se situar em 2003, em torno dos 70%, com os aumentos que não obedeceram aos preceitos constitucionais e legais vigentes no país, portanto, inexistentes, enquanto que a área social (educação e saúde) que em 1997 representava 22% das despesas de funcionamento passou a situar-se em torno dos 17%, com tendência para baixa.

Uma situação que não contribui em nada para a criação de um ambiente propício para o desenvolvimento socio-económico do país, que passa pelo investimento no conhecimento: factor fundamental para o desenvolvimento de qualquer país que se preze. Donde a necessidade premente de reformulação da política de defesa nacional que pressupõe a criação de um largo consenso social sobre a adopção do conceito de defesa nacional que sirva aos reais interesses do país.

Nesta perspectiva, toda a estratégia de Defesa Nacional deve estar ao serviço da preservação do Estado soberano e independente da Guiné-Bissau.

E como garante insubstituível da Segurança e Defesa do país, o Estado deve poder obrigar-se a valorizar os factores de identidade nacional, protegendo e promovendo o conhecimento da nossa história, fazendo respeitar os símbolos nacionais, prestigiando as Forças Armadas e defendendo os interesses do país no concerto das nações através da preservação de soberania e independência nacionais que implica, ainda, manter a integridade do processo democrático de decisão nacional.

A Guiné-Bissau deve adoptar como prioridade, a promoção da articulação da política de defesa com a política de educação, encarando-a como elemento importante do exercício da cidadania. Pois, parece-nos uma obrigação nacional reforçar a educação para o patriotismo, cuidar das componentes de Segurança e Defesa nos programas escolares e proteger, criando condições para o funcionamento de instituições de ensino especificamente militares.

As nossas Forças Armadas devem poder corresponder à dimensão das necessidades de garantir eficazmente a integridade territorial e a independência do país contra as ameaças relevantes. 

Nesse contexto, deverão estar preparadas para dissuadir e, se necessário, enfrentar, qualquer agressão armada ao seu território, à sua população, ou ao património do país, seja no quadro de um conflito generalizado, seja no quadro de um ataque localizado. 

Ao Estado incumbe, nesta perspectiva, garantir em todos os momentos, a funcionalidade dos sistemas vitais de segurança nacional, nomeadamente as redes de energia, comunicações, transportes, abastecimentos e informação.

Para proteger o Estado e a comunidade de qualquer agressão, a Defesa Nacional deverá:

  •  Ter capacidade dissuasora, no quadro do sistema de alianças sub-regionais ou bilaterais, para desencorajar as agressões ou restabelecer a paz, em condições satisfatórias para o interesse nacional;
  •  Disponibilizar a estrutura militar de defesa como um dos meios através dos quais o Estado pode revelar a vontade colectiva de soberania, e facilitar a gestão, resolução ou negociação de conflitos; 
  •  Ter capacidade para participar na segurança interna, nos termos da lei;
  •  Saber organizar, através dos meios adequados, a resistência, em caso de agressão.

Em suma, a defesa militar deve ainda articular-se com as componentes não militares da Defesa Nacional, nomeadamente, o Planeamento Civil de Emergência, de forma a permitir a utilização eficaz de meios próprios ou constituídos para tempos de crise, ou eventual conflito, e ainda para, em tempo de paz, participar na definição da segurança dos pontos estratégicos. 

E, enquanto as Forças Armadas fazem parte integrante da Administração Pública do país e desempenham uma função essencial do Estado, que se traduz na defesa da segurança e bem-estar da comunidade e da independência do Estado, uma vez mais, insistimos na necessidade de se utilizar racionalmente os instrumentos de política económica que permitam operar reformas profundas no aparelho de Estado a fim de proporcionar a todos, sem distinção nem discriminação, uma vida digna conforme à missão primordial do Estado: a realização do bem-estar geral. O que passa pela redução dos efectivos da Função Pública em toda a sua dimensão, sem exclusão, à altura dos desafios que o país enfrenta, a saber: 

  1. A reforma fiscal que permita o equilíbrio das finanças públicas;
  2. Informatização dos serviços de gestão financeira e de operações de pagamentos de salários e de serviços fornecidos ao Estado pelo Ministério da Economia e Finanças;
  3. A reforma geral da Administração Pública, o que passa pela contenção das despesas com o seu funcionamento;
  4. A reforma das Forças Armadas e o seu redimensionamento no contexto da sub-região, com base no novo conceito de defesa nacional em face da crescente globalização que assistimos, bem como a definição concreta relativamente ao dever cívico e de honra dos seus membros no que diz respeito à sua participação activa nas tarefas de reconstrução nacional, nomeadamente no combate e/ou na redução do analfabetismo e da pobreza, os dois maiores inimigos actuais da Guiné-Bissau e que contribuem grandemente para o seu bloqueio.

Em conclusão, julgamos que o Estado da Guiné-Bissau deve definir uma clara opção pela profissionalização das Forças Armadas, o que pressupõe a adopção de políticas que contribuam para o prestígio da instituição militar, a expressão das motivações e incentivos que permitam assegurar o efectivo necessário e estritamente indispensável ao desempenho das missões, a valorização pessoal, técnica e profissional dos militares, a modernização das infra-estruturas e, no plano da continuidade histórica, a dignificação dos antigos combatentes e dos deficientes das Forças Armadas.

E essa profissionalização não deve, em circunstância alguma, significar, ou permitir, o enfraquecimento do vínculo entre as novas gerações e as Forças Armadas, pelo que o Estado deverá sempre acautelar este imperativo no sentido de uma verdadeira coesão nacional.

III – AS PERSPECTIVAS FUTURAS

Decorridos estes anos da independência da Guiné-Bissau – um país com potencialidades para o desenvolvimento agro-industrial e refém dos seus libertadores e mergulhado em crises político-militares cíclicas, não se conseguiu criar o bem-estar geral para a sua população. A ausência de políticas públicas de desenvolvimento fez retroceder o país, que acusa actualmente, dum lado, um acentuado desequilíbrio de desenvolvimento na medida em que o rendimento e a produção da nação permanecem inferiores ao seu potencial, denotando uma sub-exploração dos recursos do país e, do outro, um desequilíbrio externo devido, nomeadamente, a um défice estrutural das trocas de bens, as importações mais elevadas do que as exportações –  que se resumem à castanha de caju, repita-se, tornando muito vulnerável o país, e um serviço de dívida pública bastante elevado e que tem servido tão-só para pagamento de salários, quando devia ser direccionado para a infra-estruturação do país, a criação de empregos e, consequentemente, da riqueza, permitindo ao Estado colectar impostos para fazer face à outras necessidades prementes da população.

Em face desta situação, só resta ao país e aos seus governantes adoptarem medidas de reestruturação do país como forma de colocá-lo sob os trilhos de desenvolvimento, pensando com a nossa cabeça e caminhando com os nossos próprios pés, como dizia Amílcar Cabral. Essa reestruturação deve passar pela correcção ao nível do seu sistema político e do seu aparelho administrativo, adequando-os à sua capacidade económico-financeira, impulsionando, concomitantemente, o sector privado, criando condições favoráveis ao investimento estrangeiro. Caso contrário, o país poderá conhecer estagnação económica, seguida de outras crises de proporções imprevisíveis. O desenvolvimento da Guiné-Bissau passa pela descentralização administrativa e a correspondente interiorização de quadros, assim como pela aposta efectiva no conhecimento e gestão racional e criteriosa dos recursos do país. Com essas acções poder-se-á relançar a economia através do estímulo ao processo de produção agrícola e sua transformação com vista à redução dos indicadores negativos de desenvolvimento. Só assim estaremos em condições de homenagear os nossos mártires que tombaram na luta de libertação nacional, dando significado e conteúdo à independência tão duramente conquistada, mas que, em razão de más políticas públicas, está o país a tornar-se cada vez mais dependente do exterior para a resolução dos mais elementares problemas quotidianos dos cidadãos. Em suma, como dizia Amílcar Cabral, a independência significa desenvolvimento; significa fazer melhor do que os colonialistas fizeram, na perspectiva de criar condições para o bem-estar geral das nossas populações.


[1] – Expressão pejorativa pelo qual se designavam os colonialistas portugueses;

[2] -In Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Arma da Teoria, Unidade e Luta, Volume I, Lisboa, Seara Nova, 1978, p. 136; 

[3] – Op. cit., p. 55. 

[4] – Vide os dados fornecidos pelo próprio Amílcar Cabral no relatório por ele produzido sobre o recenseamento agrícola em 1953, op. cit, p. 49;

[5] – O meio- irmão de Amílcar Cabral e um dos fundadores do PAIGC e seu dirigente que foi o primeiro Presidente da República da Guiné-Bissau, de 23 de Setembro de 1974 a 14 de Novembro de 1980, altura em que fora derrubado por um Golpe de Estado conduzido pelo seu então Comissário Principal (Primeiro Ministro) João Bernardo Vieira.

[6] – Uma política apoiada por alguns países ocidentais, nomeadamente, a Suécia, a Holanda e a França.

[7] – Implantado na localidade próxima a norte de Bissau e de que leva o nome, com o objectivo de produção de óleo alimentar, rações para animais, sabão e adubos.

[8] – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, um movimento de libertação fundado em 1956 e que levou a cabo uma guerra de libertação pela independência nacional dos dois povos durante cerca de onze anos contra o colonialismo português, sob a liderança do Eng.º agrónomo Amílcar Cabral. 

[9] – A República de Cabo Verde, situada ao largo da costa africana, a cinco milhas da Guiné-Bissau, ascendeu à independência em consequência de uma luta levada a cabo pelo PAIGC na então Guiné Portuguesa. Este Partido, em virtude dos vínculos históricos existentes entre os dois povos, tinha por objectivo programático maior a unificação dos dois Estados. 

[10] – In Introdução à Política, Editorial Estúdios Cor,Lda., Colecção Ideias e Formas, Lisboa,1972.

[11] – Hoje, de acordo com os dados não consolidados, o contingente é estimado em 4. 565. Fonte: Documento de Enquadramento preparado para a Mesa Redonda sobre a Reforma do Sector de Defesa e Segurança da Guiné-Bissau, 20 de Abril de 2009.