Por : Lionel Zevounou
DENEGAÇÃO – As sanções impostas ao Níger na sequência do golpe de Estado de uma parte do exército, e a ameaça de uma intervenção militar levantam questões sobre o papel da organização regional, que evoluiu desde a sua criação em 1975, e sobre o seu futuro a curto prazo.
O Níger é o quarto país da sub-região a sofrer um golpe militar em menos de três anos. Junta-se a uma lista crescente de países da África Ocidental (Mali, Guiné, Burkina Faso) que foram apanhados nesta espiral. O cenário é sempre o mesmo, e a linguagem é a mesma: a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), a União Económica e Monetária da África Ocidental (UEMOA), apoiadas pela União Africana (UA) e a “comunidade internacional” (ou o que resta dela), apelam ao restabelecimento da “ordem constitucional” e, para isso, impõem uma série de sanções económicas mais ou menos graves.
No caso do Níger, houve quem assinalasse que o alcance do leque dessas sanções é ainda mais vasto do que as impostas ao Mali em 2022, sem sucesso.
Recuada, soba presidência Buhari, a Nigéria, agora governada pelo recém-eleito Presidente Bola Tinubu, atual Presidente da CEDEAO, decidiu retomar o papel motor que tem desempenhado em prol da integração sub-regional; só que, desta vez, não se trata de propor um projeto unificador para uma maior integração económica e política, mas sim de uma possível intervenção militar. Sejamos claros desde já: uma tal intervenção, a acontecer, não só seria arriscada, como destruiria o projeto político da CEDEAO e da UEMOA – ou o que resta dele.
O objetivo deste pequeno texto não é tomar partido por uma das partes em detrimento da outra. Os povos de África exprimem a sua exasperação por serem governados por dirigentes civis ou militares corruptos e incompetentes. Independentemente do que a “comunidade internacional” possa dizer, não há “bons” e “maus” nesta reconfiguração sub-regional. Por detrás dos movimentos sociais que se exprimem, há povos fartos de elites endogâmicas, muitas vezes subservientes às agendas ocidentais, russas ou chinesas, que aspiram a um futuro social e político melhor e que pedem apenas paz, estabilidade, uma redistribuição adequada das riquezas nacionais e o fim da impunidade ligada à má gestão que tem atormentado constantemente o continente africano desde a independência. É neste terreno fértil, que os militares estão a criar uma legitimidade questionável do ponto de vista da legalidade constitucional; é este mesmo terreno que alimenta a fantasia de alternativas políticas demagógicas, desprovidas de projectos políticos credíveis e supostamente pan-africanas.
UMA BASE JURÍDICA VAGA
Neste novo turbilhão que está a abalar a África Ocidental, vale a pena recordar alguns pontos importantes. Antes de mais, há que colocar uma questão inquietante: com que base jurídica tenciona a CEDEAO intervir militarmente?
O artigo 58º do Tratado alterado, completado pelo Protocolo A/SP1/12/01 sobre a Democracia e a Boa Governação, adicional ao Protocolo relativo ao Mecanismo de Prevenção, Gestão, Resolução, Manutenção da Paz e da Segurança dos Conflitos, assinado em Dakar em dezembro de 2001, não prevê explicitamente a intervenção militar.
É certo que está prevista uma série de sanções graduais (artigo 45º) em caso de “perturbação da democracia por qualquer meio”, mas é difícil vislumbrar a possibilidade de uma base jurídica sólida que autorize uma intervenção armada.
As autoridades nigerianas deveriam lembrar-se que os protocolos de “Lomé” (1999) e “Dakar” (2001) e depois Dakar (2001) devem a sua existência apenas ao precedente da intervenção precipitada do Ecomog nas guerras civis que assolaram a Libéria, a Serra Leoa e depois a Guiné-Bissau. Na altura, tratava-se de guerras fratricidas que provocaram atrocidades e tiveram repercussões em toda a sub-região. Não é o caso do Níger, do Mali, da Guiné ou do Burkina Faso.
E há mais. Partindo do princípio de que uma interpretação muito lata do protocolo A/SP1/12/01 justificaria a possibilidade de recurso à força armada, seria necessário ultrapassar outros obstáculos ligados à coerência interna do Tratado da CEDEAO. Numerosas disposições estão em contradição com as sanções impostas. Enquanto país sem litoral, o Níger é abrangido pelo capítulo XIII do Tratado, que inclui um artigo 68º especificamente consagrado a esta questão:
“Os Estados-Membros, tendo em conta as dificuldades económicas e sociais com que se podem defrontar certos Estados-Membros, nomeadamente os insulares e os sem litoral, acordam em conceder-lhes, se for caso disso, um tratamento especial no que respeita à aplicação de certas disposições do presente Tratado e em prestar-lhes a assistência necessária e a prestar-lhes a assistência que for necessária.
Neste contexto, a redução do abastecimento energético do Níger afecta, em primeiro lugar, o cidadão comum nigerino; o mesmo se aplica ao encerramento das fronteiras. Além disso, como é que uma eventual intervenção militar pode ser conciliada com o artigo 4.º do Tratado modificado sobre os princípios fundamentais do Tratado, que estabelece que:
d) [a] não agressão entre os Estados-Membros; e) [a] manutenção da paz, da segurança e da estabilidade regionais através da promoção e do reforço das relações de boa vizinhança; f) [a] resolução pacífica dos litígios entre os Estados-Membros, [a] cooperação ativa entre os países vizinhos e [a] promoção de um ambiente pacífico como condição prévia para o desenvolvimento económico.
MUITAS INCOERÊNCIAS
Há uma outra questão inquietante, ligada à primeira. De acordo com a justificação coerente de qualquer intervenção militar, o Estado de direito deve ser restabelecido no Níger. Que assim seja, mas será que a CEDEAO está efetivamente disposta a assumir as consequências jurídicas? Quer estejamos a falar do Mali, da Guiné ou do Burkina Faso, a questão da eventual responsabilidade da instituição continua em aberto. Em termos prosaicos, quem irá reembolsar as perdas sofridas pelos operadores económicos locais e regionais devido às sanções impostas? Que mecanismos de compensação financeira ou de resolução extrajudicial estão previstos pela CEDEAO ou pela UEMOA, após as sanções, em caso de litígio perante as respectivas jurisdições, por parte das empresas lesadas (comerciantes, seguradoras, bancos, etc.)? O Tribunal de Justiça da UEMOA emitiu um despacho em 24 de março de 2022, que suspende as sanções impostas ao Mali pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo.
Estas são apenas algumas incoerências, mas parece que, em momento algum, foram abordados os vários aspectos jurídicos deste problema. O Tribunal de Justiça Europeu também não foi consultado. Mas, no fim de contas, para que serve raciocinar com base em textos (a menos que se seja ingénuo), numa comunidade cujos dirigentes não se sentem vinculados aos mecanismos jurídicos que invocam? Para que serve o direito, uma vez que, desde o caso do Mali, parece que se pode fazer tudo, desde que as decisões emanem da todo-poderosa Conferência dos Chefes de Estado e de Governo?
As sanções impostas ao Níger levantam a questão de saber se a CEDEAO pode realmente ser considerada como uma comunidade de direito ou como um instrumento de disciplina colectiva em termos de “boa governação” e de “Estado de direito” Esta questão não é insignificante: diz muito sobre as representações que moldam a vida quotidiana da CEDEAO.
Alguns (chefes de Estado em exercício) vêem-na como um instrumento de proteção dos seus respectivos países contra possíveis golpes de Estado; outros (parceiros ocidentais) vêem a instituição como um potencial instrumento de intervenção indireta no âmbito de uma rivalidade internacional mais vasta; e outros ainda (elites militares) demonizam a instituição, fazendo-a suportar o peso dos males pelos quais não querem ser responsabilizados. Numa tal configuração, o espaço dado às aspirações do povo africano é reduzido a muito pouco.
PARLAMENTARES FREQUENTEMENTE IGNORADOS
Antes de empenhar o seu país numa confrontação militar, o Presidente Tinubu teve o cuidado de consultar o Parlamento nigeriano sobre o possível uso da força. No momento em que escrevo, o Senado nigeriano, embora condenando o golpe de Estado no Níger, opõe-se ao uso da força numa resolução de 5 de agosto de 2023. Ao mesmo tempo, o Senado convidou o Parlamento da CEDEAO (uma instituição geralmente ignorada nas cimeiras habituais) a seguir o exemplo.
Este facto demonstra a fragilidade jurídica das decisões tomadas pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo. Na maioria dos casos, os procedimentos e debates parlamentares são simplesmente contornados. Neste sentido, o caso do Níger é excecional (embora revelador) porque comprometeria, a priori, as forças armadas nigerianas.
O contraste com outros países é gritante. O Senegal, por exemplo, através do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, também se declarou pronto a enviar tropas para o Níger. É duvidoso que o Presidente senegalês se tenha dado ao trabalho de consultar previamente o Parlamento. Mas como poderia fazê-lo, num mundo francófono herdeiro de um sistema jurídico colonial onde a lei é frequentemente equiparada a um simples comando? Ora, o referido protocolo A/SP1/12/01, no espírito da “boa governação”, apela à convergência constitucional e, nomeadamente, à promoção de uma cultura parlamentar (artigo 1 a).
CEDER AO JOGO DAS GRANDES POTÊNCIAS?
Desde a pax americana dos anos 90 a expressão “as crises africanas devem encontrar soluções africanas” significou, na maioria dos casos, que “as crises africanas devem encontrar soluções africanas, desde que coincidam com a agenda ocidental”. À medida que esta pax americana é desafiada pela Rússia, pela China e por outros membros dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), a CEDEAO parece estar a tornar-se o veículo preferido para intervenções ocidentais indirectas disfarçadas de regresso à “ordem constitucional” ou à “boa governação”. Todos estão conscientes de que uma intervenção militar direta da França ou dos Estados Unidos geraria ainda mais descrédito – ou mesmo reacções violentas – num contexto de rejeição maciça da política africana da França na África francófona.
Os contornos de uma potencial intervenção militar da CEDEAO permanecem secretos, mas parece que não será possível ou praticável sem um apoio logístico e militar mínimo dos parceiros ocidentais. Esta declaração não nos deve levar a pensar que o Presidente Tinubu é simplesmente um “fantoche” nas mãos do Ocidente. A CEDEAO tem a sua própria dinâmica interna. De facto, Tinubu junta-se ao antigo presidente Olusegun Obasanjo no seu desejo de fazer da Nigéria uma força motriz da estabilidade sub-regional.
Isto vai ao cerne da questão: é aceitável fechar os olhos ao facto de os soldados africanos poderem ir combater outros soldados africanos? O que acontecerá à fragmentação do grupo linguístico Hausa, partilhado entre o Níger, a Nigéria, o Chade, o Benim, o Togo e o Gana? Com que objetivo? E com que resultados? Ainda temos na memória as guerras sujas travadas durante a Guerra Fria em Angola (1975-2002), Moçambique (1975-1992), entre o Chade e a Líbia (1976-1987)… A lista é longa, mas mostra que, na ordem internacional, a África foi muitas vezes palco de guerras por procuração entre grandes potências. O Presidente Tinubu sabe-o bem, pois o seu país foi devastado por uma guerra civil atroz, alimentada pelas grandes potências, incluindo a França (1967-1970).
A Argélia, que tem uma fronteira de 1000 km com o Níger, manifestou claramente a sua oposição a qualquer intervenção militar; um comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 1 de agosto de 2023 condenou o golpe de Estado e apelou ao restabelecimento do “Estado de direito”, privilegiando a via do diálogo. A arriscada intervenção ocidental que levou à desestabilização da Líbia ainda está bem presente na memória de todos…
RECONSTRUÇÃO DE UM PROJECTO POLÍTICO
Os dirigentes da CEDEAO, provavelmente, esqueceram também que a organização nasceu sob o impulso de dois chefes de Estado que não se pode dizer que tenham sido eleitos democraticamente: o nigeriano Yakubu Gowon e o togolês Gnassingbé Eyadéma. Gowon, em particular, estava consciente de que era necessário romper com as potências ocidentais e que isso só poderia ser conseguido através da criação de um espaço sub-regional de solidariedade. Quando foi criada em 1975, o objetivo da Cedeao, tal como o da Comunidade Económica Europeia (CEE, hoje União Europeia), era facilitar o comércio intracomunitário. Esta missão primordial fracassou claramente, tendo sido eclipsada pela manutenção da segurança e da estabilidade desde o final da década de 1990.
Devido a esta génese, os textos comunitários não se adaptam bem a este novo papel de polícia sub-regional. Pior ainda, abrir caminho a uma intervenção militar no Níger, para restabelecer a “ordem constitucional” e a “democracia”, constituiria um precedente lamentável, uma vez que não existe nenhum modelo democrático na África Ocidental (com a possível exceção de Cabo Verde), a menos que se confunda democracia com alternância política. De um ponto de vista estritamente jurídico, a situação parece estar bloqueada.Apenas a possibilidade de sanções económicas e financeiras parece legítima à luz dos textos fundadores da CEDEAO. Temos de nos resignar ao diálogo e, sem dúvida, também, a um reinvestimento sério no projeto político sub-regional.
No mínimo, os povos africanos esperam um plano coletivo de luta contra o jihadismo, uma redistribuição mais transparente da riqueza, um maior acesso aos direitos sociais e o pleno gozo dos seus direitos políticos. Não podemos esquecer que o fracasso do pan-africanismo está ligado aos antagonismos gerados pela crise do Congo (1960-1965): o grupo de Monróvia opôs-se ao grupo de Casablanca, cortando pela raiz a possibilidade de um projeto federal africano. Os dirigentes africanos não podem ignorar esta página da história política do continente, numa altura em que o mundo se divide de novo em blocos antagónicos. Estas mudanças na ordem internacional exigem uma rutura com os hábitos tecnocráticos para dar novo fôlego ao projeto político da África Ocidental. Exposta a um risco importante de insegurança alimentar, a Nigéria (e consequentemente o Níger) deve aproveitar a crise do Níger como uma oportunidade para levar a integração da África Ocidental ainda mais longe. Não será altura de federalizar as competências nos domínios da segurança alimentar e do acesso aos cuidados de saúde, em vez de utilizar os recursos limitados dos nossos governos para financiar um uso arriscado da força?
Uma intervenção militar teria consequências graves. Desestabilizaria ainda mais a sub-região, alimentando o jihadismo; facilitaria ainda mais a inclinação da opinião pública africana para a Rússia e a China; e criaria as sementes para a futura implosão da CEDEAO e da UEMOA.
o artigo original no site: afriquexxi.info
Lionel Zevounou é advogado e professor de direito público na Universidade de Paris Nanterre. É, cofundador do Collectif pour le renouveau africain (CORA).