Monday, May 29, 2023
REFLEXÃO

Os poderes do Presidente da República no pós-23 de Junho

Junho 19, 2019
  

Por: Maimuna Gomes Sila, Advogada

“Hoje, pela primeira vez estamos a assistir de forma ininterrupta o Poder Legislativo,

Executivo e Presidencial, poder este exercido sem espancamentos, sem mortes,

sem prisões arbitrárias por questões políticas e sempre respeitando as liberdades de expressão,

de manifestação e de imprensa.José Mário Vaz (2018)

De facto, pela primeira vez na história da Guiné-Bissau, que já conta com mais de 45 anos de existência, um Presidente da República vai terminar o seu mandato, de 5 anos. Esta é a única verdade que se pode retirar da frase acima partilhada de autoria do Presidente José Mário Vaz. Todavia fazer desse período um período imaculado, vivido sem quaisquer tipos de problemas é uma falácia, que ofende o Povo guineense, que mesmo perante tamanhos desmandos e atropelos à norma-mãe, ainda assim, permitiu que o Presidente José Mário Vaz terminasse o seu mandato. E esse é um feito que terá de ser atribuído ao Presidente José Mário Vaz, ainda que a contra-gosto e sem mérito algum seu.

Mas o que deverá acontecer depois do próximo dia 23 de Junho, após o término oficial do mandato do Presidente da República? Esta é a pergunta que todos os guineenses estão a fazer, quer a si mesmos, quer aos outros.

Antes de colocarmos as hipóteses cabíveis no caso concreto, torna-se vital lembrar aos mais (intencionalmente) desatentos que num verdadeiro Estado de Direito Democrático a soberania reside no Povo – cfr. artigo 2.o e 3.o da Constituição da República da Guiné-Bissau (CRGB). Que é o mesmo que dizer que o poder soberano deve ser exercido pelos cidadãos, os quais delegam tais poderes em seus representantes, os Deputados. Estes, por sua vez, são eleitos para representar os legítimos interesses do Povo e não os seus próprios interesses. Quer isto também significar que todos os órgãos de soberania devem estrita obediência aos interesses do Povo, o verdadeiro e único soberano de uma nação que se quer democrática.

E, no caso particular do Presidente da República, que é o que nos importa aqui trazer à colação, este deve ser o símbolo da unidade nacional, tanto assim é que toma posse perante a Assembleia Nacional Popular, casa do Povo, onde se encontram os seus legítimos representantes – cfr. artigo 62.o, 67.o e 68.o da CRGB. Por outras palavras, o Presidente da República tem o dever constitucional de ser o garante da paz, estabilidade e união entre os guineenses.

Assim, até o dia 23 de Junho de 2019, data do término do mandato presidencial, o Presidente José Mário Vaz tem três importantes e inadiáveis tarefas a levar a cabo, segundo o disposto no artigo 68.o da CRGB:

1.aNomear o Primeiro-Ministro indicado pelo Partido vencedor das legislativas;

2.aNomear o Governo com os nomes indicados pelo Partido vencedor das legislativas; e

3.aMarcar a data das eleições presidenciais, a qual não deverá ultrapassar o presente ano civil.

CASO NÃO REALIZE AS TRÊS TAREFAS

Caso o Presidente José Mário Vaz opte por não realizar nenhuma dessas tarefas ou apenas parte delas, estará a desobedecer e, uma vez mais, a infringir de forma flagrante e deliberada as normas constitucionais, às quais também ele está adstrito, conforme se referiu infra, por força do artigo 8.o da CRGB e as quais jurou defender, nos termos do artigo 67.o da CRGB.

O cumprimento de qualquer uma das tarefas acima aludidas peca pela demora. Há mais de três meses que é de conhecimento de todos qual foi o partido vencedor das últimas eleições legislativas, que foram reconhecidas como livres, justas e transparentes por todos os actores políticos.

No que respeita à última tarefa, sempre se diga que o Presidente José Mário Vaz, desde o dia 23 de Junho do ano 2014 sabia que o seu mandato terminaria no dia 23 de Junho do ano 2019, decorridos exactamente 5 anos.

PROVA DE RESPEITO À CONSTITUIÇÃO

Marcar as eleições presidenciais é prova de respeito à CRGB e às demais leis respeitantes a esta questão. Porquanto, tudo deveria ter o Presidente José Mário Vaz feito para que à data do término do seu mandato, as eleições presidenciais tivessem sido realizadas. Assim, caso ele se tivesse recandidatado e ganho as eleições, seria reconduzido na função. Caso um outro candidato tivesse sido vencedor, assumiria esse o cargo de Presidente da República. Ou seja, todos estes actos, tanto o de marcação, assim como o da realização das eleições deveriam ocorrer antes da data do término do mandato do Presidente José Mário Vaz, ou seja 23 de Junho de 2019. Só nesta hipótese, poderíamos aceitar que o Presidente José Mário Vaz permanecesse no poder até à tomada de posse do novo Presidente República, o que no limite deveria acontecer no dia seguinte ao término do mandato do Presidente José Mário Vaz, 24 de Junho de 2019. Assim mandam as leis. Assim, manda, sobretudo, o bom senso, o qual deverá sempre imperar, sob pena de se estar a cometer violações flagrantes a normas e princípios tão ou mais relevantes que estas.

Aceitar que o Presidente José Mário Vaz tivesse terminado o seu mandato sem que estivessem marcadas as eleições presidenciais para além de ser uma grande aberração jurídica, constituiria um ensaio à ditadura. Pois estaríamos perante um Presidente da República que não respeita um dos preceitos constitucionais mais básicos num Estado de Direito Democrático – período de duração do seu mandato. Porquanto, se o Presidente José Mário Vaz consciente e abusivamente continuasse a violar as disposições constitucionais que o obrigam a realizar as tarefas infra descritas, passaria o Povo a ter a legitimidade de fazer valer os seus direitos, recuperando o (seu) poder, prestes a cair na tirania.

A 24 DE JUNHO EXPIRA O PRAZO DA CONFIANÇA OUTORGADA PELO POVO

Ainda que o Presidente José Mário Vaz cumpra com todas as tarefas acima referenciadas, ainda assim, a partir do dia 24 de Junho, cessa o prazo de confiança outorgada pelo Povo. O Povo, ao determinar o PAIGC como vencedor das últimas eleições legislativas, desafiou a decisão do Presidente José Mário Vaz que, em 2015, sob pretexto de que o Governo era corrupto, exonerou o Eng.o Domingos Simões Pereira. O Povo soberano fez recair no PAIGC e, consequentemente, no Eng.o Domingos Simões Pereira, a sua escolha para liderar o Governo da X.a Legislatura.

Em bom rigor, mas salvo sempre melhor opinião, é vedado ao Presidente José Mário Vaz exercer as funções de Presidente Interino no pós 23 de Junho, exactamente por já não contar com a confiança do Povo, que legitimou um partido e uma personalidade com quem ele, de forma acérrima e inequívoca, mostrou não poder coabitar