Thursday, September 28, 2023

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROJECTO DA PROPOSTA DE LEI RELATIVA AO CÓDIGO DE IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO

Setembro 28, 2021
  

Por Carlos Vamain*

A problemática da fiscalidade e a necessidade da sua reforma estão directamente relacionadas com o orçamento, que é simultâneamente « (…) um acto político” e um instrumento de politica financeira. Assim sendo, constitui o orçamento «(…) o reflexo financeiro, da política governamental, na medida em que, qualquer que seja o programa político, terá necessariamente as consequências sobre as receitas e sobre as despesas; é por isso que é votado por políticos eleitos…», que representam o povo no Parlamento. «O orçamento reflete uma visão política e constitui um desafio permanente» (Czérepak, Anne-Cécile, Les Notions de Budget, disponível Online:www.melchior.fr/1-2-Les-notions-de-budget-et7405.0.html).Donde «(…) a autoridade do Estado depende largamente dos recursos de que dispõe para a sua afirmação enquanto potência»(Jean-Marie Cotteret et Claude Emeri, Op. cit. ).

Aliás, a história nos ilustra com os factos de que «as revoluções encontram muitas vezes a sua origem imediata na bancarrota do soberano; as reivindicações salariais dos militares e dos polícias focalizam mais precisamente a atenção dos governantes do que as de guardas do museu» (Jean-Marie Cotteret et Claude Emeri,  Op. cit.).

Assim, «(…) deste ponto de vista, compreende-se  a importância fundamental do conhecimento do orçamento do Estado», que «exprime a acção da potência pública sob o seu aspecto financeiro, dando uma tradução numérica de todas as actividades do Estado». «E a repartição das despesas entre os diferentes sectores de actividade traduz as opções políticas que podem exprimir conceitos muito divergentes do bem comum»(Czérepak, Anne-Cecile, Op. cit. ).

Na Guiné-Bissau, nos últimos tempos, tem sido bastante problemática a questão orçamental, que constitui um dos factores na origem das fragilidades institucionais do país, aliados às políticas públicas inadequadas em diversos sectores da actividade do Estado e que conduziram à sua própria desestruturação. Sobretudo, num momento em que, com a adesão do país à UMOA/UEMOA, abdicou-se de alguns instrumentos da política económica, nomeadamente, a políticas monetária e cambial, restando-lhe tão-só a política fiscal, que, por sua vez, tem sido o calcanhar de Aquiles de sucessivos Governos, cuja ausência de vontade e coragem políticas de se proceder à uma reforma fiscal profunda que permita ao Estado arrecadar mais receitas para fazer face às suas despesas correntes ficaram bastante patentes.

Eis as causas de um dos males actuais das nossas finanças públicas, que podem ser extirpadas com a promoção de reformas fiscais consistentes e coerentes e, fundamentalmente, de execução de políticas e práticas correctivas na nossa administração fiscal.

Toda esta situação descrita anteriormente fez com que  tanto as despesas com  pagamento do salário, como as despesas com o investimento público constituam grandes questões que afectam consideravelmente o funcionamento normal das instituições do país e, consequentemente, contribui para a sua fragilização, originando distorções e injustiças gritantes.

 A título ilustrativo, verifica-se que o salário auferido por um servente é pago 60 vezes pelo mais alto salário praticado. E, na Assembleia Nacional Popular, o salário de um condutor paga dois salários a um quadro superior da Administração Pública. E, em alguns Ministérios que geram as receitas, o número de contratados supera o de funcionários.

Toda esta problemática está estreitamente relacionada com a fraca capacidade de arrecadação de receitas fiscais, que se traduz na fraca Taxa de Pressão Fiscal (TPF) do país (7,4%) em relação ao seu PIB nominal de 861,6 mil milhões de FCFA em 2020  com uma arrecadação de receitas fiscais no montante de 63 758 400 000 FCFA, prevendo-se  para 2021, um crescimento de receitas fiscais para 9,4%  do PIB nominal, cujo montante previsto é de 924,7 mil milhões, traduzindo-se numa arrecadação de receitas fiscais de 86 921 800 000,00 FCFA. Sem sermos pessimistas, com esta pandemia que grassa o mundo, associada à forte dependência fiscal do país em relação ao comércio internacional, não nos parece que esta meta possa ser alcançada.

Em 2012, dum total de receitas de 40 924 milhões de FCFA arrecadadas, os salários consumiram 24 566 milhões de FCFA (Vide Relatório do FMI sobre as consultas ao abrigo do Artigo IV, Maio de 2013, p. 58, Tabela 6), representando um rácio de 60,14% da massa salarial em relação às receitas fiscais, contra o limite de 35% estabelecido no quadro da convergência no seio da UEMOA. Já em 2020, situou-se em 73,6% contra os 35% e, para este ano, espera-se que se situe em torno de 63,3%. Uma situação que impõe a urgente reforma fiscal e medidas de racionalização das despesas públicas, sobretudo, no tocante à necessidade de implementação, por um lado, da TVA, que resulta da Directiva da UEMOA e, por outro, de uma Tabela Única para a Administração do Estado, que se traduz numa justiça salarial.

Assim, considerando, por um lado, que no âmbito do processo da nossa integração económica no seio da UEMOA, o país deve harmonizar, na medida necessária ao bom funcionamento do mercado comum, as legislações dos Estados membros e, particularmente, o regime da fiscalidade (Artigo 4º, alínea e), do Tratado da UEMOA) e, por outro lado, tendo em conta que os actos aprovados pelos órgãos da União para a realização dos objectivos do tratado da UEMOA e em conformidade com as regras e procedimentos  instituídos por este, são aplicados em cada Estado membro não obstante a existência de qualquer legislação nacional contrária, anterior ou posterior (Artigo 6º). Neste contexto, deve a Guiné-Bissau proceder tão-só à transposição da Directiva Directiva da UEMOA, relativa à TVA, a saber, a de 02/2009/CM/UEMOA, de 27 de Março.

Esta diligência deve visar a substituição do IGV pela TVA, em razão da sua modalidade de cobrança a montante por tratar-se, por um lado,  de um imposto indirecto que incide sobre o consumo, isto é com a cobrança a jusante e colectada por comerciantes e prestadores de serviços  e, por outro lado, por ser mais amplo e moderno, portanto, sem dispensar ainda assim, a necessária adaptação aos condicionalismos actuais vividos no país, de modo a tornar a sua colecta mais eficiente sem a contrariar. Isto porque as Directivas da UEMOA vinculam todo o Estado membro quanto aos resultados, nos termos do Artigo 43º, nº. 2, do Tratado desta instituição.

Neste caso, não nos parece ser o caso do actual projecto de lei relativo ao Código de IVA  que,  desde logo, na definição do âmbito da sua incidência, contraria frontalmente o conceito da TVA,  que é tão-só um imposto indirecto que incide sobre as despesas de consumo. Pois, quem a paga é o consumidor, sendo colectada pelas empresas  que participam no processo de produção e de comercialização. Isto porque, não pode ser definido como consistindo num imposto harmonizado sobre o consumo, incidente sobre a generalidade das operações económicas, por um  lado e, por outro, como devendo ser as suas regras interpretadas em conformidade com as directivas da UEMOA e CEDEAO, sem que estas tenham sido transpostas para a ordem jurídica interna. Aliás, a última instituição ainda não dispõe de nenhuma divectiva neste sentido, conforme consta do Artigo 1º, do projecto de lei relativa ao Código de IVA. E, ao prever a sua incidência sobre as importações de bens nos termos da alínea b), do Artigo 2º, do projecto de Código do IVA, está-se perante adulteração completa da finalidade da TVA como imposto indirecto que incide tão-só sobre o consumo, contrariando-se, desta forma, a directiva da UEMOA relativa à Tarifa Externa Comum (TEC).

Convém sublinhar que o princípio que está na origem da TVA, um imposto indirecto que incide sobre o consumo e pretação de serviços é o seguinte:

A empresa ou o estabelecimento comercial aumenta o seu preço de venda do montante da TVA que facture ao seu cliente e remete ao Estado após a dedução (caso haja lugar a esse procedimento nos termos da lei), que consiste numa operação de recuperação da TVA que teve de pagar aos seus próprios fornecedores para a aquisição dos bens e serviços necessários à sua actividade. A título exemplificativo, eis o cálculo da TVA para o consumidor:

Para um produto ou serviço de consumo corrente e, supondo que a taxa fixada é de 25%, cujo preço é facturado por 1000,00 FCFA, o preço sem a respectiva taxa será igual a 1000,00 FCFA. Com o montante da TVA teremos: 1000,00 FCFA X (25/1000,00FCFA) = 250,00 FCFA. Assim o preço da venda do produto ao consumidor incluindo a taxa de 25% será de 1250,00 FCFA. Os 250,00 FCFA da taxa serão remetidos aos cofres do Estado. Assim sendo, limitemo-nos a transpor e aplicar a Directiva da UEMOA relativa à TVA, evitando insistir em desnaturar esse imposto indirecto que pela sua cobrança eficaz pode exponencialmente aumentar as receitas fiscais do Estado da Guiné-Bissau para fazer face aos intrincados desafios de desenvolvimento que enfrenta.

 1. OBJECTIVOS
 

A presente reforma fiscal pela transposição para a ordem jurídica interna da Directiva da UEMOA referida anteriormente, é precisamente no sentido de permitir a sustentabilidade do Orçamento Geral do Estado e, por conseguinte, a modernização do Estado. O que passa, designadamente, pela dignificação e motivação dos funcionários e agentes da Administração do Estado nos sectores portadores de crescimento e eficazes na redução da pobreza.

  2.VANATGENS
 A adopção do projecto da transposição da Directiva relativa à TVA vai, sem dúvida, permitir a diminuição do peso do salário nas receitas, proporcionando, assim, ao Estado, consignar uma parte considerável de receitas decorrente do acréscimo da TVA aos programas de investimento no sector social, designadamente, saúde e educação. Ademais, com as taxas de 20% incidindo sobre bebidas alcoólicas e produtos de perfumaria e carros de alta cilindrada e  de 5% sobre os produtos alimentares o impacto no custo de vida será relativamente menor, respectivamente, pagas pelos consumidores, portanto a jusante e não a montante como tem sido o caso do IGV, que em 2019 permitiu ao Estado arrecadar um total de receitas de 7 534 000 000 de FCFA contra a previsão de 20 863 000 000 de FCFA e, em 2020, registou uma queda para os cerca de 6 394 000 000 de FCFA contra a previsão de 16 186 000 000 de FCFA. Contrariamente, com a transposição da Directiva da UEMOA relativa à TVA permitir-se-á ao Estado aumentar substancialmente a arrecadação de receitas através deste imposto indirecto, desde que sejam criadas condições prévias para a sua administração eficiente, obrigando as empresas e os estabelecimentos comerciais a disporem de meios de facturação adequados que permitam a discriminação das percentagens da TVA a ser paga pelo consumidor.

3. IMPLICAÇÃO ORÇAMENTAL E SUSTENTABILIDADE

Com a implementação da TVA – um imposto que incide sobre o consumo – face a  uma média de importação de mercadorias no montante de 33.382.500.000,00 de FCFA, o país pode arrecadar uma receita fiscal suplementar subestimada de, aproximadamente, cerca de  20.743.140.000,00 de FCFA. O que representa, por um lado, um acréscimo de cerca de 44,13% em relação ao montante global das receitas arrecadadas em 2012 (47 000.000.000,00 de FCFA) e, por outro, um aumento de 4% das receitas em relação ao PIB, elevando, deste modo, a Taxa de Pressão Fiscal do país, de 7,4% para 11,4% do PIB, reduzindo, consequentemente, o distanciamento da Guiné-Bissau em relação à média dos oito países da UEMOA, que se situa em 14,63%, conforme se pode verificar no relatório do Fundo Monetário Internacional sobre as consultas com a Guiné-Bissau ao abrigo do Artigo IV (Maio de 2013, p.38,Tabela B4).

 Ademais, de acordo com os estudos do Fundo Monstário Internacional, o país dispõe de um potencial de arrecadação de receitas em torno de 20,69% do PIB. De recordar que em 2020, a Taxa de Pressão Fiscal foi de 7,4% do PIB, enquanto que a deste ano (2021) foi prevista para 9,4%. Uma meta difícil de se conseguir neste contexto da pandemia.

No cenário da reforma fiscal, incluindo a implementação da TVA, poderá permitir ao país arrecadar um total (subestimado) de receitas  em  cerca de 22 953 742 500,00 de FCFA, conforme o cenário de arrecadação subestimada em anexo,  reduzindo, deste modo, o nosso défice orçamental, sem contar com as receitas provenientes da TVA que incidirão sobre as rendas de casa e prestações de serviços. Uma situação que poderá contribuir consideravelmente para a redução do rácio da massa salarial em relação às receitas fiscais para um nível razoável no âmbito do cumprimento dos critérios de convergência no seio da UEMOA fixado em 35%.

Neste contexto, a arrecadação das receitas da TVA pode, de per si, cobrir largamente as despesas com os salários e permitir o funcionamento normal da Administração Pública, reduzindo drasticamente as suas actuais fragilidades e, sobretudo, a dependência do país em relação ao exterior, em matéria de pagamento de salários.

4. OPERACIONALIZAÇÃO

Ao Governo competirá operacionalizar esta urgente reforma fiscal de que o país necessita, adoptando medidas que consubstanciem os objectivos preconizados pela transposição da Directiva em causa, no âmbito da elaboração da proposta do OGE para 2022, nomeadamente:

1- A implementação da Directiva n. 02/98/CM/UEMOA, de 22 de Dezembro relativa à harmonização das legislações dos Estados membros e modificada pela Directiva n. 02/2009/CM/UEMOA, de 27 de Março e consequente alargamento da base tributária de forma a evitar ao máximo a evasão fiscal;

2- A introdução e/ou a efectiva cobrança, nomeadamente, de seguintes impostos de:

  1. Solidariedade Nacional (equivalente ao anterior imposto de Reconstrução Nacional, este, colectado pelos serviços da Administração tributária, pode render ao Estado o seguinte montante: considerando a população activa de 700 000 X 5 000,00 FCFA = 3 500 000 000,00 FCFA por ano);
  2. Democracia, este fixado igualmente em 5 000 000 FCFA, de forma simplificada, pode permitir uma arrecadação de  3 500 000 000,00 FCFA por ano;
  3. Predial Urbano.

No caso deste último imposto, em face de dados  do INE da Guiné-Bissau, que datam de 2009, altura do recenseamento, existiam 39 249 casas de construção definitiva e 31 438 200 casas arrendadas na Guiné-Bissau. Se o Estado cobrasse o Imposto Predial Urbano às primeiras, com a cobrança de 120 000,00 FCFA por ano, podia estar a arrecadar  4 709 880 000,00 FCFA  e se cobrasse sobre os rendimentos às segundas uma taxa de 200 000,00 FCFA por ano, estaria a arrecadar 6 287 600 000,00 FCFA. Assim sendo, o Estado  poderia, com esta reforma fiscal, estar a arrecadar 13 758 588 000,00 FCFA.

5. A TABELA ÚNICA SALARIAL PARA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Tabela Única  Salarial visa tão-só a correção de injustiças salariais decorrentes da desproporcionalidade das tabelas dos diferentes departamentos, serviços e instituições do Estado e a sua racionalização, numa perspectiva de redistribuição equitativa da riqueza nacional e da eficiência da gestão orçamental, bem como da criação de condições do bem-estar dos funcionários e servidores do Estado, melhorando consideravelmente o seu nível de vida, que se pretende com a presente reforma fiscal de modo a permitir a sua sustentabilidade.

A presente proposta contempla um único quadro geral de remuneração que aproxima as diferentes categorias hierarquizadas da Administração do Estado, criando, consequentemente, condições para uma melhor motivação dos funcionários e servidores do Estado no que diz respeito à sua produtividade.

 Ademais, a Tabela Única Salarial contempla, nomeadamente, os descontos legais de 6%, nos termos do Decreto-Lei n.11/2012, relativo ao Estatuto de aposentação dos funcionários e servidores do Estado, para o Fundo de Pensões de funcionários e servidores do Estado, estimado, anualmente, em cerca de 2,1 mil milhões de FCFA, numa perspectiva de melhor garantir a futura aposentação destes, com a vantagem de sua eventual capitalização através da construção de habitações sociais.

6.MEDIDAS DE ACOMPANHAMENTO    

A operacionalização efectiva da reforma fiscal preconizada depende da implementação ao nível da Administração Pública, nomeadamente, das normas relativas à:

  1. Carreira;
  2. Avaliação do desempenho dos funcionários;
  3. Capacitação e reciclagem dos funcionários no quadro da Escola Nacional de Administração, que deve funcionar na directa dependência do Chefe do Governo, por tratar-se de um centro de formação profissional superior que visa qualificar os altos quadros da Administração do Estado, sem prejuízo da existência, no seio da Universidade Amílcar Cabral, duma Faculdade de Administração para a formação de quadros superiores com base em numerus clausus;
  4. Reestruturação e formação do pessoal do serviço da Administração da Inspeção dos Impostos, erigindo-o num corpo de funcionários responsáveis pelos controlos fiscais;
  5. Instituição da Taxa Progressiva sobre a importação do arroz visando o estímulo interno à produção deste cereal e à garantia da segurança alimentar da população;
  6. Implementação efectiva da Directiva N. 06/2009/CM/UEMOA, de 26 de Junho, da lei transposta para a ordem interna e relativa às normas orçamentais visando a instauração no seio da União de regras que permitam uma gestão transparente e rigorosa das finanças públicas, com o propósito de confortar o crescimento económico.

Em conclusão,à luz do dsposto nos Artigos 4º, 6º, 7º e 43º, n.º 2, do Tratado da UEMOA, em conjugação com os Artigos 43º e 44º da Directiva n.º 02/2009/CM/UEMOA, de 27 de Março, relativa à TVA, aconselha-se e recomenda-se a via da transposição desta directiva para a ordem jurídica interna como forma de harmonização da política fiscal – o único instrumento de política económica que resta à Guiné-Bissau no quadro do seu processo de integração económica no seio desta instituição económica e monetária da região da África ocidental.

* Carlos Vamain é Advogado & Consultor